domingo, 13 de janeiro de 2013


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 2 de Janeiro de 2013


Foi concebido por obra do Espírito Santo
Queridos irmãos e irmãs,
O Natal do Senhor ilumina mais uma vez com a sua luz as trevas que muitas vezes envolvem o nosso mundo e nosso coração, e traz esperança e alegria. De onde vem esta luz? Da gruta de Belém, onde os pastores encontraram «Maria, José e o Menino, deitado na manjedoura» (Lc 2, 16). Diante desta Sagrada Família surge uma interrogação mais profunda: como pode aquele Menino pequenino e frágil ter trazido uma novidade tão radical ao mundo, a ponto de mudar o curso da história? Existe porventura algo de misterioso na sua origem, que vai mais além daquela gruta?
Assim, reemerge sempre de novo a interrogação sobre a origem de Jesus, a mesma que é feita pelo Procurador Pôncio Pilatos durante o processo: «De onde és Tu?» (Jo 19, 9). E no entanto, trata-se de uma origem bem clara. No Evangelho de João, quando o Senhor afirma: «Eu sou o pão que desceu do céu», os judeus reagem murmurando: «Não é porventura Ele Jesus, filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Portanto, como é que diz agora: “Desci do Céu?”» (Jo 6, 42). E, pouco mais tarde, os cidadãos de Jerusalém opõem-se vigorosamente diante da presumível messianidade de Jesus, afirmando que se sabe bem «de onde Ele é; Mas o Messias, ao contrário, quando vier, ninguém saberá de onde é» (Jo 7, 27). O próprio Jesus faz notar como é inadequada a pretensão deles de conhecer a Sua origem, e deste modo já oferece uma orientação para saber de onde Ele provém: «Não vim de mim mesmo; mas Aquele que me enviou, e que vós não conheceis, Ele é verdadeiro» (Jo 7, 28). Sem dúvida, Jesus é originário de Nazaré, nasceu em Belém, mas que se sabe da sua verdadeira origem?
Nos quatro Evangelhos sobressai claramente a resposta à pergunta «de onde» vem Jesus: a sua verdadeira origem é o Pai, Deus; Ele provém totalmente d’Ele, de uma maneira diversa de qualquer profeta ou enviado de Deus que o tenha precedido. Esta origem do mistério de Deus, “que ninguém conhece”, está contida já nas narrações da infância, nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, que estamos a ler neste tempo de Natal. O arcanjo Gabriel anuncia: «O Espírito Santo descerá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer há-de chamar-se Filho de Deus» (Lc 1, 35). Nós repetimos estas palavras cada vez que recitamos o Credo, a Profissão de fé: «Et incarnatus est de Spiritu Sancto, ex Maria Virgine», «encarnou-se no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo». Diante desta frase ajoelhamo-nos porque o véu que ocultava é, por assim dizer, desvelado e o seu mistério insondável e inacessível nos toca: Deus torna-se o Emanuel, «o Deus connosco». Quando ouvimos as Missas compostas pelos grandes mestres da música sacra, penso por exemplo na Missa da Coroação, de Mozart, observamos imediatamente como eles fazem uma pausa de maneira particular nesta frase, como se quisessem procurar expressar com a linguagem universal da música aquilo que as palavras não conseguem manifestar: o grandioso mistério de Deus que se encarna, que se faz homem.
Se considerarmos atentamente a expressão «encarnou-se no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo», descobrimos que ela inclui quatro sujeitos em acção. De modo explícito, são mencionados o Espírito Santo e Maria, mas está também subentendido «Ele», ou seja o Filho, que se fez carne no seio da Virgem, Na Profissão de fé, o Credo, Jesus é definido com diversos apelativos: «Senhor... Cristo, Filho unigénito de Deus... Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro... da mesma substância do Pai» (Credo niceno-constantinopolitano). Em seguida, damo-nos conta que «Ele» remete para outra Pessoa, o Pai. Por conseguinte, o primeiro sujeito desta frase é o Pai que, com o Filho e com o Espírito Santo, é o único Deus.
Esta afirmação do Credo não diz respeito ao ser eterno de Deus, mas fala-nos sobretudo de uma acção na qual participam as três Pessoas divinas e que se realiza «ex Maria Virgine». Sem ela, a entrada de Deus na história da humanidade não teria alcançado a sua finalidade e não se teria realizado aquilo que é central na nossa Profissão de fé: Deus é um Deus connosco. Assim, Maria pertence de modo irrenunciável à nossa fé no Deus que age, que entra na história. Ela põe à disposição toda a sua pessoa, «aceita» tornar-se lugar da morada de Deus.
Às vezes, também no caminho e na vida de fé, nós podemos sentir a nossa pobreza, a nossa inadequação perante o testemunho a oferecer ao mundo. Todavia, Deus escolheu precisamente uma mulher humilde, num povoado desconhecido, numa das províncias mais remotas do grande império romano. Sempre, mesmo no meio das dificuldades mais árduas a enfrentar, devemos ter confiança em Deus, renovando a fé na sua presença e na sua acção da nossa história, assim como na de Maria. Para Deus nada é impossível! Com Ele, a nossa existência caminha sempre num terreno seguro e está aberta a um futuro de esperança firme.
Professando no Credo: «Encarnou-se no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo», nós afirmamos que o Espírito Santo, como força do Deus Altíssimo, realizou de forma misteriosa na Virgem Maria a concepção do Filho de Deus. O evangelista Lucas cita as palavras do arcanjo Gabriel: «O Espírito descerá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra» (1, 35). Duas evocações são evidentes: a primeira é no momento da criação. No início do Livro do Génesis lemos que «o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas» (1, 2); é o Espírito criador que deu vida a todas as coisas e ao ser humano. Aquilo que aconteceu em Maria, através da obra do mesmo Espírito divino, é uma nova criação: Deus, que do nada chamou o ser, mediante a Encarnação dá agora vida a um novo início da humanidade. Os Padres da Igreja falam diversas vezes de Cristo como do novo Adão, para sublinhar o início da nova criação a partir do nascimento do Filho de Deus no seio da Virgem Maria. Isto leva-nos a meditar sobre o modo como a fé traz, também a nós, uma novidade tão vigorosa, a ponto de produzir um segundo nascimento. Com efeito, no início do nosso ser cristãos está o Baptismo, que nos faz renascer como filhos de Deus, que nos faz participar na relação filial que Jesus tem com o Pai. E gostaria de observar que nós recebemos o Baptismo, ou seja, nós «somos baptizados» — é um passivo — porque ninguém é capaz de se tornar filho de Deus sozinho: trata-se de uma dádiva que nos é conferida gratuitamente. São Paulo evoca esta filiação adoptiva dos cristãos numa passagem central da sua Carta aos Romanos, onde escreve: «Na verdade, todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porquanto, vós não recebestes um espírito de escravidão para voltardes a cair no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção pelo qual chamamos: “Abá! Pai!”. O próprio Espírito dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus» (8, 14-16). Só abrindo-nos à obra de Deus, como Maria, e confiando a nossa vida ao Senhor como a um amigo em quem temos uma confiança total, é que tudo mudará, a nossa vida há-de adquirir um novo sentido e um novo rosto: o de filhos de um Pai que nos ama e nunca nos abandona.
Falámos de dois elementos: o primeiro é o Espírito, sobre a superfície das águas, o Espírito Criador; mas há um segundo elemento nas palavras da Anunciação. O arcanjo diz a Maria: «A força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra». Trata-se de uma evocação da nuvem santa que, durante o caminho do êxodo, pairava sobre a tenda do encontro, sobre a arca da aliança, que o povo de Israel levava consigo, e que indicava a presença de Deus (cf. Êx 40, 34-38). Portanto, Maria é a nova tenda santa, a nova arca da aliança: mediante o seu «sim» às palavras do arcanjo, Deus recebe uma morada neste mundo, Aquele que o universo inteiro não pode conter adquire morada no ventre de uma virgem.
Então, voltemos à questão da qual partimos, a propósito da origem de Jesus, resumida, pela pergunta de Pilatos: «De onde és Tu?». Das nossas reflexões aparece claramente, desde o início dos Evangelhos, qual é a verdadeira origem de Jesus: Ele é o Filho Unigénito do Pai, Ele vem de Deus. Estamos diante do grande e extraordinário mistério que celebramos neste tempo de Natal: por obra do Espírito Santo, o Filho de Deus encarnou-se no seio da Virgem Maria. Trata-se de um anúncio que ressoa sempre novo e que traz consigo esperança e alegria ao nosso coração, porque nos dá a certeza de que, não obstante muitas vezes nos sintamos frágeis, pobres e incapazes diante das dificuldades e do mal do mundo, contudo o poder de Deus age sempre e realiza maravilhas precisamente na debilidade. A sua graça é a nossa força (cf. 2 Cor 12, 9-10). Obrigado!


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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2012


Virgem Maria. Ícone da fé obediente
Queridos irmãos e irmãs!
No caminho do Advento, a Virgem Maria ocupa um lugar especial, como Aquela que de maneira singular esperou a realização das promessas de Deus, acolhendo na fé e na carne Jesus, o Filho de Deus, em plena obediência à vontade divina. Hoje, gostaria de meditar brevemente convosco a propósito da fé de Maria, a partir do grande mistério da Anunciação.
«Chaîre kecharitomene, ho Kyrios meta sou», «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo!» (Lc 1, 28). São estas as palavras — citadas pelo evangelista Lucas — com as quais o arcanjo Gabriel se dirige a Maria. À primeira vista, o termo chaîre, “ave”, parece uma saudação normal, usual no âmbito grego, mas estas palavras, se forem lidas no contexto da tradição bíblica, adquirem um significado muito mais profundo. Este mesmo termo aparece quatro vezes na versão grega do Antigo Testamento e sempre como anúncio de alegria pela vinda do Messias (cf. Sf 3, 14; Gl 2, 21; Zc 9, 9; Lm 4, 21). Portanto, a saudação do anjo a Maria constitui um convite à alegria, a um júbilo profundo, anuncia o fim da tristeza que existe no mundo, diante do limite da vida, do sofrimento, da morte, da maldade e da obscuridade do mal que parece ofuscar a luz da bondade divina. Trata-se de uma saudação que marca o início do Evangelho, da Boa Nova.
Mas por que Maria é convidada a alegrar-se deste modo? A resposta encontra-se na segunda parte da saudação: “o Senhor está contigo”. Também aqui, para compreender bem o sentido desta expressão, devemos consultar o Antigo Testamento. No Livro de Sofonias encontramos esta expressão: «Alegra-te, filha de Sião... O rei de Israel, que é o Senhor, está no meio de ti... O Senhor teu Deus está no meio de ti como Salvador poderoso» (3, 14-17). Nestas palavras existe uma promessa dupla feita a Israel, à filha de Sião: Deus virá como Salvador e fará a sua morada precisamente no meio do seu povo, no ventre da filha de Sião. No diálogo entre o anjo e Maria realiza-se exactamente esta promessa: Maria é identificada com o povo desposado por Deus, é verdadeiramente a Filha de Sião em pessoa; é nela que se cumpre a expectativa da vinda definitiva de Deus, é nela que o Deus vivo faz a sua morada.
Na saudação do anjo, Maria é chamada «cheia de graça»; em grego o termo «graça», charis, tem a mesma raiz linguística da palavra «alegria». Também nesta expressão é ulteriormente esclarecida a nascente do alegrar-se de Maria: o júbilo provém da graça, ou seja, deriva da comunhão com Deus, do facto de manter um vínculo tão vital com Ele, a ponto de ser morada do Espírito Santo, totalmente plasmada pela obra de Deus. Maria é a criatura que de modo singular abriu totalmente a porta ao seu Criador, colocando-se nas suas mãos sem quaisquer limites. Ela vive inteiramente dana relação com o Senhor; põe-se em atitude de escuta, atenta a captar os sinais de Deus no caminho do seu povo; está inserida numa história de fé e de esperança nas promessas de Deus, que constitui o tecido da sua existência. E submete-se de maneira livre à palavra recebida, à vontade divina na obediência da fé.
O evangelista Lucas narra a vicissitude de Maria através de um paralelismo requintado com a vicissitude de Abraão. Do mesmo modo como o grande Patriarca é o pai dos crentes, que respondeu à chamada de Deus para sair da terra em que vivia, das suas seguranças, para começar a percorrer o caminho rumo a uma terra desconhecida e possuída só na promessa divina, assim Maria entrega-se com plena confiança à palavra que lhe anuncia o mensageiro de Deus, tornando-se modelo e mãe de todos os crentes.
Gostaria de sublinhar mais um aspecto importante: a abertura da alma a Deus e à sua obra na fé inclui também o elemento da obscuridade. A relação do ser humano com Deus não cancela a distância entre Criador e criatura, não elimina aquilo que o apóstolo Paulo afirma perante as profundezas da sabedoria de Deus: «Quão impenetráveis são os seus juízos e inexploráveis os seus caminhos!» (Rm 11, 33). Mas precisamente aquele que — como Maria — está aberto de modo total a Deus, consegue aceitar a vontade divina, ainda que seja misteriosa, embora muitas vezes não corresponda à propria vontade e seja uma espada que trespassa a alma, como profeticamente o velho Simeão dirá a Maria no momento em que Jesus é apresentado no Templo (cf. Lc 2, 35). O caminho de fé de Abraão abrange o momento de alegria pelo dom do filho Isaac, mas inclusive o momento da obscuridade, quando deve subir ao monte Moriá para cumprir um gesto paradoxal: Deus pede-lhe que sacrifique o filho que lhe tinha acabado de doar. No monte, o anjo ordena-lhe: «Não estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças nada; agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho» (Gn 22, 12); a confiança plena de Abraão no Deus fiel às promessas não esmorece nem sequer quando a sua palavra é misteriosa e difícil, quase impossível, de aceitar. É assim que acontece para Maria, pois a sua fé vive a alegria da Anunciação, mas passa inclusive através da obscuridade da crucifixão do seu Filho, para poder chegar até à luz da Ressurreição.
Não é diferente inclusive para o caminho de fé de cada um de nós: encontramos momentos de luz, mas vivemos também outros nos quais Deus parece ausente; o seu silêncio pesa no nosso coração e a sua vontade não corresponde à nossa, àquilo que nós gostaríamos. Mas quanto mais nos abrirmos a Deus, acolhermos o dom da fé, depositarmos totalmente nele a nossa confiança — como Abraão e como Maria — tanto mais Ele nos torna capazes, mediante a sua presença de viver cada situação da vida na paz e na certeza da sua fidelidade e do seu amor. No entanto, isto significa sair de nós mesmos e dos nossos projectos, a fim de que a Palavra de Deus seja a lâmpada orientadora dos nossos pensamentos e das nossas acções.
Gostaria de reflectir ainda sobre um aspecto que sobressai das narrações sobre a Infância de Jesus, escritas por são Lucas. Maria e José levam o Filho a Jerusalém, ao Templo, para o apresentar e consagrar ao Senhor, como prescreve a lei de Moisés: «Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor» (cf. Lc 2, 22-24). Este gesto da Sagrada Família adquire um sentido ainda mais profundo, se o interpretarmos à luz da ciência evangélica de Jesus com doze anos que, depois de três dias de procura, é encontrado no Templo a dialogar com os doutores. Às palavras cheias de preocupação de Maria e José: «Filho, porque nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura», corresponde a resposta misteriosa de Jesus: «Por que me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?» (Lc 2, 48-49). Ou seja, na propriedade do Pai, na casa do Pai, como o é um filho. Maria deve renovar a fé profunda com que disse «sim» na Anunciação; deve aceitar que a precedência seja do verdadeiro Pai de Jesus; deve saber deixar livre aquele Filho que gerou, a fim de que siga a sua missão. E o «sim» de Maria à vontade de Deus, na obediência da fé, repete-se ao longo de toda a sua vida, até ao momento mais difícil da Cruz.
Diante de tudo isto, podemos interrogar-nos: como foi que Maria conseguiu viver este caminho ao lado do Filho, com uma fé tão sólida, também nas obscuridades, sem perder a confiança completa na obra de Deus? Existe uma atitude de fundo que Maria assume perante aquilo que se verifica na sua vida. Na Anunciação, Ela sente-se perturbada ao ouvir as palavras do anjo — trata-se do temor que o homem sente quando é tocado pela proximidade de Deus — mas não é a atitude de quantos têm medo diante daquilo que Deus pode pedir. Maria medita, interroga-se a respeito do significado de tal saudação (cf. Lc 1, 29). O termo grego utilizado no Evangelho para definir este «meditar», «dielogizeto», evoca a raiz da palavra «diálogo». Isto significa que Maria entra em diálogo íntimo com a Palavra de Deus que lhe foi anunciada, não a considera superficialmente, mas detém-se, deixa-a penetrar na sua mente e no seu coração para compreender aquilo que o Senhor deseja dela, o sentido do anúncio. Outra referência à atitude interior de Maria diante da obra de Deus encontramo-la, ainda no Evangelho de são Lucas, no momento da Natividade de Jesus, depois da adoração dos pastores. Afirma-se que Maria «conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19); em grego, o termo é symballon; poderíamos dizer que Ela «mantinha unidos», «reunia» no seu coração todos os eventos que lhe estavam a acontecer; colocava cada um dos elementos, cada palavra, cada acontecimento no interior do tudo confrontando-o, conservando-o e reconhecendo que tudo deriva da vontade de Deus. Maria não se limita a uma primeira compreensão superficial daquilo que acontece na sua vida, mas sabe olhar em profundidade, deixa-se interpelar pelos eventos, elabora-os, discerne-os e alcança aquele entendimento que só a fé pode garantir. É a humildade profunda da fé obediente de Maria, que acolhe em si mesma também aquilo que não compreende no agir de Deus, deixando que seja Deus quem abre a sua mente e o seu coração. «Feliz daquela que acreditou que teria cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45), exclama a sua prima Isabel. É precisamente pela sua fé, que todas as gerações lhe chamarão ditosa.
Caros amigos, a solenidade do Natal do Senhor, que daqui a pouco celebraremos, convida-nos a viver esta mesma humildade e obediência de fé. A glória de Deus não se manifesta no triunfo e no poder de um rei, não resplandece numa cidade famosa, num palácio luxuoso, mas faz a sua morada no ventre de uma virgem, revela-se na pobreza de um menino. A omnipotência de Deus, também na nossa vida, age com a força, muitas vezes silenciosa, da verdade e do amor. Então, a fé diz-nos que no final o poder indefeso daquele Menino vence o ruído das potências do mundo.

Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121219_po.html

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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 12 de Dezembro de 2012


O Ano da Fé. As etapas da Revelação
Queridos irmãos e irmãs,
Na catequese passada falei da Revelação de Deus, como comunicação que Ele faz de Si mesmo e do seu desígnio de benevolência e de amor. Esta Revelação de Deus insere-se no tempo e na história dos homens: história que se torna «o lugar onde podemos constatar a obra de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos» (João Paulo II, Encíclica Fides et ratio, 12).
O evangelista são Marcos — como ouvimos — cita com termos claros e sintéticos, os momentos iniciais da pregação de Jesus: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo» (Mc 1, 15). O que ilumina e dá sentido pleno à história do mundo e do homem começa a resplandecer na gruta de Belém; é o Mistério que contemplaremos daqui a pouco, no Natal: a salvação que se realiza em Jesus Cristo. Em Jesus de Nazaré Deus manifesta o seu rosto e pede a decisão do homem de o reconhecer e seguir. O revelar-se de Deus na história, para entrar em relação de diálogo de amor com o homem, dá um novo sentido a todo o caminho humano. A história não é um simples suceder-se de séculos, anos e dias, mas é o tempo de uma presença que lhe confere pleno significado, abrindo-a a uma esperança sólida.
Onde podemos ler as etapas desta Revelação de Deus? A Sagrada Escritura é o lugar privilegiado para descobrir os acontecimentos deste caminho, e gostaria — mais uma vez — de convidar todos, nestes Ano da fé, a tomar nas mãos mais frequentemente a Bíblia para a ler e meditar, e a prestar maior atenção às Leituras da Missa dominical; tudo isto constitui um alimento precioso para a nossa fé.
Lendo o Antigo Testamento podemos ver que as intervenções de Deus na história do povo que Ele escolhe para Si e com o qual estabelece aliança não são eventos que passam e caem no esquecimento, mas tornam-se «memória», constituem juntos a «história da salvação», conservada viva na consciência do povo de Israel através da celebração dos acontecimentos salvíficos. Assim, no Livro do Êxodo o Senhor indica a Moisés que celebre o grande momento da libertação da escravidão do Egipto, a Páscoa judaica, com estas palavras: «Conservareis a memória daquele dia, celebrando-o com uma festa em honra do Senhor: fareis isso de geração em geração, pois é uma instituição perpétua» (12, 14). Para todo o povo de Israel, recordar o que Deus realizou torna-se uma espécie de imperativo constante, para que o transcorrer do tempo seja marcado pela memória viva dos acontecimentos passados, que assim formam, dia após dia, de novo a história e permanecem presentes. No Livro do Deuteronómio, Moisés dirige-se ao povo, dizendo: «Cuida de nunca esqueceres o que viste com os teus olhos, e toma cuidado para que isso nunca saia do teu coração, enquanto viveres; e ensina-o aos teus filhos, e aos filhos dos teus filhos» (4, 9). E assim diz também a nós: «Cuida de nunca esqueceres o que Deus fez por nós». A fé é alimentada pela descoberta e pela memória do Deus sempre fiel, que guia a história e constitui o fundamento seguro e estável sobre o qual apoiar a própria vida. Também o cântico do Magnificat, que a Virgem Maria eleva a Deus, é um exemplo excelso desta história da salvação, desta memória que torna e mantém presente o agir de Deus. Maria exalta o agir misericordioso de Deus no caminho concreto do seu povo, a fidelidade às promessas de aliança feitas a Abraão e à sua descendência; e tudo isto é memória viva da presença divina que nunca esmorece (cf. Lc 1, 46-55).
Para Israel, o Êxodo é o evento histórico central em que Deus revela o seu agir poderoso. Deus liberta os israelitas da escravidão do Egipto, para que possam regressar à Terra prometida e adorá-lo como Senhor único e verdadeiro. Israel não se põe a caminho para ser um povo como os outros — para ter também ele uma independência nacional — mas para servir Deus no culto e na vida, a fim de criar para Deus um lugar onde o homem lhe é obediente, onde Deus está presente e é adorado no mundo; e, naturalmente, não só para eles, mas para o testemunhar no meio dos outros povos. Celebrar este evento é torná-lo presente e actual, porque a obra de Deus não desfalece. Ele é fiel ao seu desígnio de libertação e continua a persegui-lo, a fim de que o homem possa reconhecer e servir o seu Senhor e responder com fé e amor ao seu agir.
Portanto, Deus revela-se não só no gesto primordial da criação, mas entrando na nossa história, na história de um pequeno povo que não era o mais numeroso, nem o mais forte. E esta Revelação de Deus, que continua na história, culmina em Jesus Cristo: Deus, o Logos, a Palavra criadora que está na origem do mundo, encarnou em Jesus e mostrou o verdadeiro rosto de Deus. Em Jesus realizam-se todas as promessas, nele culmina a história de Deus com a humanidade. Quando lemos a narração dos dois discípulos a caminho de Emaús, escrita por são Lucas, vemos como sobressai de modo claro que a pessoa de Cristo ilumina o Antigo Testamento, toda a história da salvação, e mostra o grande desígnio unitário dos dois Testamentos, indica o caminho da sua unicidade. Com efeito, Jesus explica aos dois viandantes confusos e decepcionados, que Ele é o cumprimento de todas as promessas: «E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se fora dito em todas as Escrituras» (24, 27). O evangelista cita a exclamação dos dois discípulos depois de ter reconhecido que aquele companheiro de viagem era o Senhor: «Não ardia o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (v. 32).
Catecismo da Igreja Católica resume as etapas da Revelação divina, indicando sinteticamente o seu desenvolvimento (cf. nn. 54-64): Deus convidou o homem desde os primórdios a uma comunhão íntima consigo, e até quando o homem, pela sua própria desobediência, perdeu a sua amizade, Deus não o quis abandonar ao poder da morte, mas ofereceu muitas vezes aos homens a sua aliança (cf. Missal Romano, Oração eucarística IV). O Catecismo repercorre o caminho de Deus com o homem, desde a aliança com Noé depois do dilúvio, até à chamada de Abraão, a sair da sua terra para fazer dele pai de uma multidão de povos. Deus forma Israel como seu povo, através do evento do Êxodo, a aliança do Sinai e o dom, por meio de Moisés, da Lei para ser reconhecido e servido como o único Deus vivo e verdadeiro. Com os profetas, Deus guia o seu povo na esperança da salvação. Conhecemos — através de Isaías — o «segundo Êxodo», o regresso do exílio da Babilónia para a própria terra, a refundação do povo; mas ao mesmo tempo, muitos permanecem na dispersão e assim tem início a universalidade desta fé. No final, já não se espera apenas um rei, David, um filho de David, mas um «Filho do homem», a salvação de todos os povos. Realizam-se encontros entre as culturas, primeiro com a Babilónia e a Síria, depois também com a multidão grega. Assim vemos como o caminho de Deus se amplia, se abre cada vez mais para o Mistério de Cristo, Rei do universo. Em Cristo realiza-se finalmente a Revelação na sua plenitude, o desígnio de benevolência de Deus: Ele mesmo faz-se um de nós.
Detive-me a fazer memória do agir de Deus na história do homem, para mostrar as etapas deste grande desígnio de amor testemunhado no Antigo e no Novo Testamento: um único desígnio de salvação dirigido à humanidade inteira, progressivamente revelado e realizado pelo poder de Deus, onde Deus reage sempre às respostas do homem e encontra novos inícios de aliança quando o homem se perde. Isto é fundamental no caminho de fé. Estamos no tempo litúrgico do Advento, que nos prepara para o Santo Natal. Como todos nós sabemos, o termo «Advento» significa «vinda», «presença», e no passado indicava precisamente a chegada do rei ou do imperador a uma determinada província. Para nós, cristãos, esta palavra indica uma realidade maravilhosa e impressionante: o próprio Deus cruzou o seu Céu e debruçou-se sobre o homem; estabeleceu uma aliança com ele, entrando na história de um povo; Ele é o rei que desceu nesta pobre província que é a terra e concedeu-nos a sua visita assumindo a nossa carne, tornando-se homem como nós. O Advento convida-nos a repercorrer o caminho desta presença e recorda-nos sempre de novo que Deus não saiu do mundo, não está ausente, não nos abandonou a nós mesmos, mas vem ao nosso encontro de vários modos, que devemos aprender a discernir. E também nós, com a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade, somos chamados todos os dias a divisar e testemunhar esta presença no mundo muitas vezes superficial e distraído, e a fazer resplandecer na nossa vida a luz que iluminou a gruta de Belém. Obrigado!



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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 5 de Dezembro de 2012


O Ano da Fé. Deus revela o seu "desígnio de benevolência"
Queridos irmãos e irmãs,
No início da sua Carta aos cristãos de Éfeso (cf. 1, 3-14), o apóstolo Paulo eleva uma prece de bênção a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos introduz na vivência do tempo de Advento, no contexto do Ano da fé. O tema deste hino de louvor é o projecto de Deus a respeito do homem, definido com termos repletos de alegria, de enlevo e de acção de graças, como um «desígnio de benevolência» (v. 9), de misericórdia e de amor.
Por que motivo o Apóstolo eleva a Deus, do profundo do seu coração, esta bênção? Porque vê o seu agir na história da salvação, culminado na encarnação, morte e ressurreição de Jesus, e contempla como o Pai celeste nos escolheu ainda antes da criação do mundo, para sermos seus filhos adoptivos. No seu Filho Unigénito, Jesus Cristo (cf. Rm 8, 14s.; Gl 4, 4 s.). Nós existimos desde a eternidade na mente de Deus, num grande desígnio que Deus conservou em si mesmo e que decidiu pôr em prática e revelar «na plenitude dos tempos» (cf. Ef 1, 10). Por conseguinte, são Paulo faz-nos compreender como toda a criação e, de modo particular, o homem e a mulher, não são fruto do acaso, mas correspondem a um desígnio de benevolência da razão eterna de Deus que, com o poder criador e redentor da sua Palavra, dá origem ao mundo. Esta primeira afirmação recorda-nos que a nossa vocação não consiste simplesmente em existir no mundo, em sermos inseridos numa história, e nem sequer apenas em sermos criaturas de Deus; é algo ainda maior: é o facto de termos sido escolhidos por Deus, ainda antes da criação do mundo, no seu Filho Jesus Cristo. Portanto nele nós existimos — por assim dizer — desde sempre. Deus contempla-nos em Cristo, como filhos adoptivos. O «desígnio de benevolência» de Deus, que é qualificado pelo Apóstolo como «desígnio de amor» (Ef 1, 5), é definido «o mistério» da vontade divina (cf. v. 9), escondido e agora manifestado na Pessoa e na obra de Jesus Cristo. A iniciativa divina precede toda a resposta humana: trata-se de um dom gratuito do seu amor, que nos envolve e nos transforma.
Mas qual é a finalidade derradeira deste desígnio misterioso? Qual é o centro da vontade de Deus? É aquele — diz-nos são Paulo — de «reconduzir a Cristo, única Cabeça, todas as coisas» (v. 10). Nesta expressão nós encontramos uma das formulações fulcrais do Novo Testamento, que nos fazem compreender o desígnio de Deus, o seu projecto de amor pela humanidade inteira, uma formulação que, no século ii, santo Ireneu de Lião inseriu como núcleo da sua cristologia: «recapitular» toda a realidade em Cristo. Talvez alguns de vós se recordem da fórmula utilizada pelo Papa São Pio x, para a consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus: «Instaurare omnia in Christo», fórmula que se inspira nesta expressão paulina e que era também o lema daquele santo Pontífice. No entanto, o Apóstolo fala mais precisamente de recapitulação do universo em Cristo, e isto significa que no grande desígnio da criação e da história, Jesus Cristo eleva-se como centro de todo o caminho do mundo, eixo principal de tudo, que atrai a si toda a realidade, para superar a dispersão e o limite, e reconduzir tudo à plenitude desejada por Deus (cf.Ef 1, 23).
Este «desígnio de benevolência» não permaneceu, por assim dizer, no silêncio de Deus, na altura do seu Céu, mas fê-lo conhecer entrando em relação com o homem, ao qual não revelou apenas algo, mas revelou-se a si mesmo. Ele não comunicou simplesmente um conjunto de verdades, mas comunicou-se a si mesmo, a ponto de se fazer um de nós, até se encarnar. O Concílio Ecuménico Vaticano ii na Constituição dogmática Dei Verbum diz: «Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo [não apenas a algum aspecto de si, mas a Ele próprio] e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e tornam-se participantes da natureza divina» (n. 2). Deus não só diz algo, mas comunica-se a si mesmo, atrai-nos na natureza divina, de tal modo que nós somos envolvidos nela, que somos divinizados. Deus revela o seu grande desígnio de amor, entrando em relação com o homem, aproximando-se dele a ponto de se fazer Ele mesmo homem. O Concílio acrescenta: «Deus invisível... na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos (cf. Êx 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Br 3, 38) para os convidar e admitir à comunhão com Ele» (Ibidem). Unicamente com a sua inteligência e com as suas capacidades, o homem não teria podido alcançar esta revelação tão luminosa do amor de Deus; foi Deus que abriu o seu Céu e se humilhou para orientar o homem rumo ao abismo do seu amor.
São Paulo escreve ainda aos cristãos de Corinto: «Coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou... tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que O amam. Todavia, Deus no-las revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus» (1 Cor 2, 9-10). E são João Crisóstomo, numa célebre página de comentário do início da Carta aos Efésios, convida a saborear toda a beleza deste «desígnio de benevolência» de Deus revelado em Cristo, com as seguintes palavras: «O que te falta? Tornaste-te imortal, tornaste-te livre, tornaste-te filho, tornaste-te justo, tornaste-te irmão, tornaste-te co-herdeiro; reinas com Cristo e com Cristo és glorificado. Tudo nos foi doado e — como está escrito — «como não nos dará também com Ele todas as coisas?» (Rm 8, 32). As tuas primícias (cf. 1 Cor 15, 20.23) são adoradas pelos anjos [...]: o que é que te falta?» (pg 62, 11).
Esta comunhão em Cristo, por obra do Espírito Santo, oferecida por Deus a todos os homens com a luz da Revelação, não é algo que vem a sobrepor-se acima da nossa humanidade, mas constitui o cumprimento das aspirações mais profundas, daquele desejo de infinito e de plenitude que se abriga no íntimo do ser humano, abrindo-o a uma felicidade não momentânea nem limitada, mas eterna. São Boaventura de Bagnoregio, referindo-se a Deus que se revela e nos fala através das Sagradas Escrituras para nos conduzir a Ele, faz a seguinte afirmação: «A Sagrada Escritura é [...] o livro no qual estão escritas palavras de vida eterna para que não apenas acreditemos, mas também possuamos a vida eterna, na qual veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos» (Breviloquium, Prol.; Opera Omnia vv. 201 s.). Finalmente, o Beato Papa João Paulo ii recordava que «a Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé» (Encíclica Fides et ratio, 14).
Nesta perspectiva, o que é portanto o acto da fé? É a resposta do homem à Revelação de Deus, que se faz conhecer, que manifesta o seu desígnio de benevolência; é, para utilizar uma expressão agostiniana, deixar-se conquistar pela Verdade que é Deus, uma Verdade que é Amor. Por isso, são Paulo ressalta que é a Deus, que revelou o seu mistério, que se deve «a obediência da fé» (Rm16, 26; cf. 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), a atitude mediante a qual «o homem se entrega total e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade... e prestando voluntário assentimento à sua revelação» (Constituição dogmática Dei Verbum, 5). Tudo isto leva a uma mudança fundamental no modo de se relacionar com toda a realidade; tudo aparece numa luz nova; por conseguinte, trata-se de uma verdadeira «conversão», pois a fé consiste numa «mudança de mentalidade», porque o Deus que se revelou em Jesus Cristo e faz conhecer o seu desígnio de amor, conquista-nos, atrai-nos e torna-se o sentido que sustém a vida, a rocha sobre a qual ela pode encontrar estabilidade. No Antigo Testamento encontramos uma densa expressão sobre a fé, que Deus confia ao profeta Isaías a fim de que a comunique ao rei de Judá, Acaz. Deus afirma: «Se não acreditardes — ou seja, se não permanecerdes fiéis a Deus — não conseguireis subsistir» (Is 7, 9b). Portanto, existe um vínculo entre o estar e o compreender, que expressa bem o modo como a fé é um acolher na própria vida a visão de Deus sobre a realidade, deixar que seja Deus a orientar-nos com a sua Palavra e os seus Sacramentos para compreendermos o que devemos realizar, qual é o caminho que devemos percorrer, como havemos de viver. Mas ao mesmo tempo, é precisamente o compreender em conformidade com Deus, o ver com os seus olhos, que torna a nossa vida estável, que nos permite «permanecer de pé» e não cair.
Estimados amigos, o Advento, o tempo litúrgico ao qual há pouco demos início e que nos prepara para o Santo Natal, coloca-nos diante do mistério luminoso da vinda do Filho de Deus, do grandioso «desígnio de benevolência» com o qual Ele deseja atrair-nos a si, para nos fazer viver em plena comunhão de alegria e de paz com Ele. O Advento convida-nos mais uma vez, no meio de tantas dificuldades, a renovar a certeza de que Deus está presente: Ele entrou no mundo, fazendo-se um de nós, para levar à plenitude o seu plano de amor. E Deus pede-nos que, também nós, nos tornemos um sinal da sua obra no mundo. Através da nossa fé, da nossa esperança e da nossa caridade, Ele quer entrar no mundo sempre de novo e, sempre de novo, deseja fazer resplandecer a sua luz na nossa noite.




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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 28 de Novembro de 2012


O Ano da Fé. Como falar de Deus?
Queridos irmãos e irmãs,
A interrogação central que hoje levantamos é a seguinte: como falar de Deus no nosso tempo?Como comunicar o Evangelho, para abrir caminhos à sua verdade salvífica nos corações muitas vezes fechados dos nossos contemporâneos e nas suas mentes por vezes distraídas pelas numerosas luzes da sociedade? O próprio Jesus, dizem-nos os evangelistas, ao anunciar o Reino de Deus, interrogou-se acerca disto: «A quem compararemos o Reino de Deus? Ou com que parábola o representaremos?» (Mc 4, 30). Como falar de Deus hoje? A primeira resposta é que nós podemos falar de Deus, porque Ele falou connosco. Portanto, a primeira condição para falar de Deus é a escuta daquilo que o próprio Deus disse. Deus falou connosco! Por conseguinte, Deus não é uma hipótese distante sobre a origem do mundo; não é uma inteligência matemática muito distante de nós. Deus interessa-se por nós, ama-nos, entrou pessoalmente na realidade da nossa história e comunicou-se a si mesmo a ponto de se encarnar. Portanto, Deus é uma realidade da nossa vida, é tão grande que tem tempo também para nós, preocupa-se connosco. Em Jesus de Nazaré nós encontramos o rosto de Deus, que desceu do seu Céu para se imergir no mundo dos homens, no nosso mundo, e para ensinar a «arte de viver», o caminho da felicidade; para nos libertar do pecado e para nos tornar filhos de Deus (cf. Ef 1, 5; Rm 8, 14). Jesus veio para nos salvar e para nos mostrar a vida boa do Evangelho.
Falar de Deus quer dizer, antes de tudo, ter bem claro o que devemos levar aos homens e às mulheres do nosso tempo: não um Deus abstracto, uma hipótese, mas um Deus concreto, um Deus que existe, que entrou na história e está presente na história; o Deus de Jesus Cristo como resposta à pergunta fundamental do porquê e do como viver. Por isso, falar de Deus exige uma familiaridade com Jesus e com o seu Evangelho, supõe um nosso conhecimento pessoal e real de Deus, e uma forte paixão pelo seu desígnio de salvação, sem ceder à tentação do sucesso, mas seguindo o método do próprio Deus. O método de Deus é o da humildade — Deus faz-se um de nós — é o método realizado na Encarnação na simples casa de Nazaré e na gruta de Belém, o da parábola do pequeno grão de mostarda. É preciso não temer a humildade dos pequenos passos e confiar no fermento que se mistura com a massa e que, lentamente, a faz crescer (cf. Mt 13, 33). Ao falar de Deus, na obra de evangelização, sob a guia do Espírito Santo, é necessária uma recuperação de simplicidade, um retorno ao essencial do anúncio: a Boa Notícia de um Deus que é real e concreto, um Deus que se interessa por nós, um Deus-Amor que se faz próximo de nós em Jesus Cristo até à Cruz, e que na Ressurreição nos doa a esperança e nos abre para uma vida que não tem fim, a vida eterna, a vida verdadeira. Aquele comunicador extraordinário que foi o apóstolo Paulo oferece-nos uma lição que vai precisamente ao cerne da fé, do problema de «como falar de Deus» com grande simplicidade. Na Primeira Carta aos Coríntios, ele escreve: «Também eu, quando fui ter convosco, irmãos, não fui com o prestígio da eloquência nem da sabedoria, anunciar-vos o testemunho de Deus. Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado» (2, 1-2). Portanto, a primeira realidade é que Paulo não fala de uma filosofia por ele desenvolvida, não fala de ideias que encontrou alhures ou que inventou, mas fala de uma realidade da sua vida, fala do Deus que entrou na sua vida, fala de um Deus real que vive, falou com Ele e falará connosco, fala do Cristo crucificado e ressuscitado. A segunda realidade é que Paulo não se procura a si mesmo, não quer criar para si um grupo de admiradores, não quer entrar na história como chefe de uma escola de grandes conhecimentos, não se procura a si mesmo, mas são Paulo anuncia Cristo e deseja conquistar as pessoas para o Deus verdadeiro e real. Paulo fala só com o desejo de anunciar aquilo que entrou na sua vida, e que é a vida autêntica, que o arrebatou no caminho de Damasco. Portanto, falar de Deus quer dizer reservar espaço Àquele que no-lo faz conhecer, que nos revela o seu rosto de amor; quer dizer expropriar o próprio eu, oferecendo-o a Cristo, na consciência de que não somos nós que podemos conquistar os outros para Deus, mas devemos esperá-los do próprio Deus, invocá-los dele. Portanto, falar de Deus nascer da escuta, do nosso conhecimento de Deus que se realiza na familiaridade com Ele, na vida da oração e segundo os Mandamentos.
Comunicar a fé, para são Paulo, não significa anunciar-se a si mesmo, mas dizer aberta e publicamente aquilo que viu e sentiu no encontro com Cristo, quanto experimentou na sua existência já transformada por aquele encontro: é anunciar aquele Jesus que sente presente em si e que se tornou a verdadeira orientação da sua vida, para levar todos a compreender que Ele é necessário para o mundo e é decisivo para a liberdade de cada homem. O apóstolo não se contenta com proclamar palavras, mas envolve toda a sua existência na grande obra da fé. Para falar de Deus, é necessário reservar-lhe espaço, na confiança de que é Ele quem age na nossa debilidade: reservar-lhe espaço sem medo, com simplicidade e alegria, na convicção profunda de que quanto mais O pusermos no centro, Ele e não nós, tanto mais a nossa comunicação será frutuosa. E isto é válido também para as comunidades cristãs: elas são chamadas a mostrar a acção transformadora da graça de Deus, superando individualismos, fechamentos, egoísmos, indiferenças e vivendo o amor Deus nos relacionamentos quotidianos. Perguntemo-nos se as nossas comunidades são verdadeiramente assim. Temos que agir, para nos tornarmos sempre e realmente assim, anunciadores de Cristo e não de nós mesmos.
Nesta altura, temos que nos interrogar como o próprio Jesus comunicava. Na sua unicidade, Jesus fala do seu Pai — Abbá — e do Reino de Deus, com o olhar cheio de compaixão pelas necessidades e dificuldades da existência humana. Fala com grande realismo e, diria, o essencial do anúncio de Jesus é que torna transparente o mundo e a nossa vida tem valor para Deus. Jesus demonstra que no mundo e na criação transparece o rosto de Deus e mostra-nos que Deus está presente nas histórias quotidianas da nossa vida. Quer nas parábolas da natureza, o grão de mostarda, o campo com diversas sementes, quer na nossa vida, pensamos na parábola do filho pródigo, de Lázaro e noutras parábolas de Jesus. Dos Evangelhos nós vemos como Jesus se interessa por cada situação humana que Ele encontra, se imerge na realidade dos homens e das mulheres do seu tempo, com uma confiança plena na ajuda do Pai. E que realmente nesta história, de modo escondido, Deus está presente e, se prestarmos atenção, podemos encontrá-lo. E os discípulos que vivem com Jesus, as multidões que O encontram, vêem a sua reacção aos problemas mais diversos, vêem como Ele fala, como se comporta; vêem nele a obra do Espírito Santo, a acção de Deus. Nele anúncio e vida entrelaçam-se: Jesus age e ensina, começando sempre a partir de uma relação íntima com Deus Pai. Este estilo torna-se uma indicação essencial para nós, cristãos: o nosso modo de viver na fé e na caridade torna-se um falar de Deus no presente, porque mostra com uma existência vivida em Cristo a credibilidade, o realismo daquilo que dizemos com palavras, que não são apenas palavras, mas demonstram a realidade, a realidade verdadeira. E nisto devemos estar atentos a captar os sinais dos tempos na nossa época, ou seja, a identificar as potencialidades, os desejos, os obstáculos que se encontram na cultura actual, de modo particular o desejo de autenticidade, o anseio pela transcendência, a sensibilidade pela salvaguarda da criação, e comunicar sem temor a resposta oferecida pela fé em Deus. O Ano da fé é ocasião para descobrir, com a fantasia animada pelo Espírito Santo, novos percursos a níveis pessoal e comunitário, a fim de que em cada lugar a força do Evangelho seja sabedoria de vida e orientação da existência.
Também no nosso tempo, um lugar privilegiado para falar de Deus é a família, a primeira escola para comunicar a fé às novas gerações. O Concílio Vaticano II fala dos pais como dos primeiros mensageiros de Deus (cf. Constituição dogmática Lumen gentium, 11; Decreto Apostolicam actuositatem, 11), chamados a redescobrir esta sua missão, assumindo a responsabilidade de educar, de abrir as consciências dos pequeninos ao amor de Deus, como um serviço fundamental à sua vida, de ser os primeiros catequistas e mestres da fé para os seus filhos. E nesta tarefa é importante antes de tudo a vigilância, que significa saber aproveitar as ocasiões favoráveis para introduzir na família o discurso de fé e para fazer amadurecer uma reflexão crítica em relação aos numerosos condicionamentos aos quais os filhos estão submetidos. Esta atenção dos pais é também sensibilidade de entender as possíveis interrogações religiosas presentes no espírito dos filhos, às vezes evidentes, outras, escondidas. Depois, a alegria: a comunicação da fé deve ter sempre uma tonalidade de alegria. É a alegria pascal, que não se cala, nem oculta a realidade da dor, do sofrimento, do cansaço, da dificuldade, da incompreensão e da própria morte, mas sabe oferecer os critérios para interpretar tudo na perspectiva da esperança cristã. A vida boa do Evangelho é precisamente este novo olhar, esta capacidade de ver cada situação com os olhos do próprio Deus. É importante ajudar todos os membros da família a compreender que a fé não é um peso, mas uma fonte de júbilo profundo, é entender a obra de Deus, reconhecer a presença do bem, que não faz ruído; e oferece orientações preciosas para viver bem a própria existência. Enfim, a capacidade de escuta e de diálogo: a família deve ser um ambiente em que as pessoas aprendem a estar juntas, a recompor os contrastes no diálogo recíproco, que é feito de escuta e de palavra, a compreender-se e a amar-se, para ser um sinal mútuo do amor misericordioso de Deus.
Portanto, falar de Deus quer dizer fazer compreender com a palavra e com a vida que Deus não é o concorrente da nossa existência, mas sobretudo o seu verdadeiro garante, o protector da grandeza da pessoa humana. Assim voltamos ao início: falar de Deus é comunicar, com força e simplicidade, com a palavra e a vida, aquilo que é essencial: o Deus de Jesus Cristo, aquele Deus que nos mostrou um amor tão grande, a ponto de se encarnar, morrer e ressuscitar por nós; aquele Deus que pede para O seguir e para se deixar transformar pelo seu amor imenso, para renovar a nossa vida e os nossos relacionamentos; aquele Deus que nos concedeu a Igreja, para caminharmos juntos e, através da Palavra e dos Sacramentos, renovarmos toda a Cidade dos homens, a fim de que ela possa tornar-se Cidade de Deus.



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PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 21 de Novembro de 2012


Ano da Fé. O bom senso da fé em Deus
Estimados irmãos e irmãs
Caminhemos em frente neste Ano da fé, levando no nosso coração a esperança de redescobrir quanta alegria existe em crer e em reencontrar o entusiasmo de comunicar a todos as verdades da fé. Estas verdades não constituem uma simples mensagem acerca de Deus, uma informação particular sobre Ele. Ao contrário, exprimem o acontecimento do encontro de Deus com os homens, encontro salvífico e libertador, que realiza as aspirações mais profundas do homem, os seus anseios de paz, de fraternidade e de amor. A fé leva a descobrir que o encontro com Deus valoriza, aperfeiçoa e eleva aquilo que existe de verdadeiro, de bom e de belo no homem. Assim acontece que, enquanto Deus se revela e se deixa conhecer, o homem descobre quem é Deus e, conhecendo-o, descobre-se a si mesmo, a própria origem, o seu destino, a grandeza e a dignidade da vida humana.
A fé permite um saber autêntico sobre Deus, que abrange toda a pessoa humana: é um “saber”, ou seja de um conhecer que confere sabor à vida, um novo gosto de existir, um modo jubiloso de estar no mundo. A fé manifesta-se no dom de si pelos outros, na fraternidade que torna o homem solidário, capaz de amar, vencendo a solidão que o torna triste. Por isso, este conhecimento de Deus através da fé não é unicamente intelectual, mas vital. É o conhecimento de Deus-Amor, graças ao seu próprio amor. Além disso, o amor de Deus faz ver, abre os olhos, permite conhecer toda a realidade, para além das perspectivas limitadas do individualismo e do subjectivismo que desorientam as consciências. Por isso, o conhecimento de Deus é experiência de fé e implica, ao mesmo tempo, um caminho intelectual e moral: tocados profundamente pela presença do Espírito de Jesus em nós, ultrapassamos os horizontes dos nossos egoísmos e abrimo-nos aos verdadeiros valores da existência.
Hoje, nesta catequese, gostaria de meditar sobre o bom senso da fé em Deus. Desde os primórdios, a tradição católica rejeitou o chamado fideísmo, que é a vontade de crer contra a razão. Credo quia absurdum (creio, porque é absurdo) não é uma fórmula que interpreta a fé católica. Com efeito, Deus não é absurdo, eventualmente é mistério. O mistério por sua vez não é irracional, mas superabundância de sentido, de significado, de verdade. Se, olhando para o mistério, a razão vê obscuridade, não é porque no mistério não haja luz, mas sobretudo porque há demasiada. Assim como quando o olhar do homem se volta directamente para o sol, só vê trevas; mas quem diria que o sol não é luminoso, aliás, a fonte da luz? A fé permite olhar para o «sol», Deus, porque é acolhimento da sua revelação na história e, por assim dizer, recebe verdadeiramente toda a luminosidade do mistério de Deus, reconhecendo o grande milagre: Deus aproximou-se do homem, ofereceu-se ao seu conhecimento, condescendendo com o limite criatural da sua razão (cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Costituição dogmática Dei Verbum, 13). Ao mesmo tempo Deus, com a sua graça, ilumina a razão, abre-lhe horizontes novos, incomensuráveis e infinitos. Por isso, a fé constitui um estímulo a procurar sempre, a nunca parar nem se contentar com a descoberta inesgotável da verdade e da realidade. É falso o preconceito de certos pensadores modernos, segundo os quais a razão humana seria como que bloqueada pelos dogmas da fé. É verdade precisamente o contrário, como os grandes mestres da tradição católica demonstraram. Antes da sua conversão, santo Agostinho procura a verdade com grande inquietação, através de todas as filosofias disponíveis, julgando-as todas insatisfatórias. A cansativa busca racional é para ele uma pedagogia significativa para o encontro com a Verdade de Cristo. Quando diz: «compreende para crer, e crê para compreender» (Discurso 43, 9: PL 38, 258), é como se narrasse a própria experiência de vida. Diante da Revelação divina, intelecto e fé não são alheios nem antagonistas, mas ambos são condições para compreender o sentido da mesma, para acolher a sua mensagem autêntica, aproximando-se do limiar do mistério. Juntamente com muitos outros autores cristãos, santo Agostinho é testemunha de uma fé que se exerce com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste sulco, santo Anselmo dirá no seu Proslogion que a fé católica éfides quaerens intellectum, onde o procurar a inteligência é um acto interior do crer. Será principalmente são Tomás de Aquino — fortalecido por esta tradição — que se confrontará com a razão dos filósofos, mostrando quanta vitalidade racional nova e fecunda deriva para o pensamento humano da inserção dos princípios e das verdades da fé cristã.
Portanto, a fé católica é razoável e nutre confiança também na razão humana. Na Constituição dogmática Dei Filius, o Concílio Vaticano I afirmou que a razão é capaz de conhecer com certeza a existência de Deus através do caminho da criação, enquanto à fé pertence só a possibilidade de conhecer «facilmente, com certeza absoluta e sem erro» (ds 3005) as verdades que dizem respeito a Deus, à luz da graça. Além disso, o conhecimento da fé não é contrário à recta razão. Com efeito, na Encíclica Fides et ratio, o Beato Papa João Paulo II resume assim: «A razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente» (n. 43). No desejo irresistível de verdade, somente uma relação harmoniosa entre fé e razão é o caminho recto que conduz a Deus e ao pleno cumprimento de si mesmo.
Esta doutrina é facilmente reconhecível em todo o Novo Testamento. Como ouvimos, escrevendo aos cristãos de Corinto, são Paulo afirma: «Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos» (1 Cor 1, 22-23). Com efeito, Deus salvou o mundo não com um gesto de poder, mas mediante a humilhação do seu Filho unigénito: segundo os parâmetros humanos, a modalidade insólita actuada por Deus não condiz com as exigências da sabedoria grega. E no entanto, a Cruz de Cristo tem uma sua razão, que são Paulo chama: ho lógos tou staurou, “a palavra da cruz” (1 Cor 1, 18). Aqui, o termo lógos indica tanto a palavra como a razão e, se alude à palavra, é porque expressa verbalmente o que a razão elabora. Portanto, Paulo vê na Cruz não um acontecimento irracional, mas um acontecimento salvífico que possui um seu bom senso reconhecível à luz da fé. Ao mesmo tempo, ele tem tanta confiança na razão humana, a ponto de se admirar pelo facto de que muitos, mesmo vendo as obras realizadas por Deus, se obstinam a não acreditar n’Ele. Na Carta aos Romanos diz: «Com efeito, as... perfeições invisíveis [de Deus], o seu poder e divindade sempiternos, tornam-se visíveis à inteligência, através das suas obras» (1, 20). Assim, também são Pedro exorta os cristãos da diáspora a adorar «Cristo Senhor nos vossos corações. Estai sempre prontos a responder, para a vossa defesa, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1 Pd 3, 15). Num clima de perseguição e de forte exigência de testemunhar a fé, aos fiéis pede-se que justifiquem com motivações fundadas a sua adesão à palavra do Evangelho, que expliquemos a razão da nossa esperança.
É nestas premissas acerca do nexo fecundo entre compreender e crer que se funda inclusive a relação virtuosa entre ciência e fé. Como vemos, a pesquisa científica leva ao conhecimento de verdades sempre novas sobre o homem e o cosmos. O verdadeiro bem da humanidade, acessível na fé, abre o horizonte no qual se deve mover o seu caminho de descoberta. Portanto devem ser encorajadas, por exemplo, as investigações postas ao serviço da vida, que visam debelar as enfermidades. São importantes também as pesquisas destinadas a descobrir os segredos do nosso planeta e do universo, na consciência de que o homem está no ápice da criação não para a explorar insensatamente, mas para a preservar e tornar habitável. Assim a fé, vivida realmente, não entra em conflito com a ciência, aliás, coopera com ela, oferecendo critérios basilares a fim de que promova o bem de todos, pedindo-lhe que renuncie apenas àquelas tentativas que — opondo-se ao desígnio originário de Deus — podem produzir efeitos que se voltam contra o próprio homem. Também por isso é razoável acreditar: se a ciência é uma aliada preciosa da fé para a compreensão do desígnio de Deus no universo, a fé permite que o progresso científico se realize sempre para o bem e para a verdade do homem, permanecendo fiel a este mesmo desígnio.
Eis por que motivo é decisivo para o homem abrir-se à fé e conhecer Deus e o seu desígnio de salvação em Jesus Cristo. No Evangelho é inaugurado um novo humanismo, uma autêntica «gramática» do homem e de toda a realidade. O Catecismo da Igreja Católica afirma: «A verdade de Deus é a sua sabedoria, que comanda toda a ordem da criação e governo do mundo. Só Deus que, sozinho, “criou o céu e a terra” (Sl 115, 15), pode dar o conhecimento verdadeiro de todas as coisas criadas na sua relação com Ele» (n. 216).
Então, confiamos que o nosso compromisso na evangelização ajuda a dar uma renovada centralidade ao Evangelho na vida de muitos homens e mulheres do nosso tempo. E oremos a fim de que todos voltem a encontrar em Cristo o sentido da existência e o fundamento da verdadeira liberdade: com efeito, sem Deus o homem perde-se a si próprio. Os testemunhos de quantos nos precederam e dedicaram a sua vida ao Evangelho confirmam-no para sempre. Crer é razoável, está em jogo a nossa existência. Vale a pena despender-se por Cristo, o único que sacia os desejos de verdade e de bem arraigados na alma de cada homem: agora, no tempo que passa, e no dia sem ocaso da Eternidade bem-aventurada.


Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121121_po.html


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quinta-feira, 22 de novembro de 2012


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 14 de Novembro de 2012


O ano da fé. Os caminhos para chegar ao conhecimento de Deus
Queridos irmãos e irmãs!
Na quarta-feira passada reflectimos sobre o desejo de Deus que o ser humano leva no profundo de si mesmo. Hoje gostaria de continuar a aprofundar este aspecto, meditando brevemente convosco sobre alguns caminhos para chegar ao conhecimento de Deus. Contudo, gostaria de recordar que a iniciativa de Deus precede sempre todas as iniciativas do homem e, também no caminho rumo a Ele, é Ele em primeiro lugar quem nos ilumina, orienta e guia, respeitando sempre a nossa liberdade. E é sempre Ele quem nos faz entrar na sua intimidade, revelando-se e doando-nos a graça para poder acolher esta revelação na fé. Nunca esqueçamos a experiência de santo Agostinho: não somos nós que possuímos a Verdade depois de a termos procurado, mas é a Verdade que nos procura e nos possui.
Todavia, há caminhos que podem abrir o coração do homem ao conhecimento de Deus, sinais que conduzem para Deus. Certamente, com frequência corremos o risco de sermos ofuscados pelo cintilar da vida mundana, que nos torna menos capazes de percorrer tais caminhos ou de ler tais sinais. Contudo, Deus não se cansa de nos procurar, é fiel ao homem que criou e salvou, permanece próximo da nossa vida, porque nos ama. Esta é uma certeza que nos deve acompanhar todos os dias, mesmo se determinadas mentalidades difundidas dificultam que a Igreja e o cristão comuniquem a alegria do Evangelho a cada criatura e levem todos ao encontro com Jesus, único Salvador do mundo. Todavia, esta é a nossa missão, é a missão da Igreja e todos os crentes devem vivê-la jubilosamente, sentindo-a como própria, através de uma existência animada verdadeiramente pela fé, marcada pela caridade, pelo serviço a Deus e aos outros, e capaz de irradiar esperança. Esta missão resplandece sobretudo na santidade para a qual todos somos chamados.
Hoje — sabemo-lo — não faltam dificuldades e provações para a fé, frequentemente pouco compreendida, contestada e rejeitada. São Pedro dizia aos seus cristãos: «Estai sempre prontos a responder, para a vossa defesa, com doçura e respeito, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1 Pd 3, 15). No passado, no Ocidente, numa sociedade considerada cristã, a fé era o âmbito no qual ela se movia; a referência e a adesão a Deus eram, para a maioria das pessoas, parte da vida quotidiana. Ao contrário, era quem não acreditava que devia justificar a própria incredulidade. No nosso mundo a situação mudou e cada vez mais o crente deve ser capaz de dizer a razão da sua fé. O beato João Paulo II, na Encíclica Fides et ratio, realçava o modo como a fé é posta à prova também na época contemporânea, atravessada por formas súbtis e capciosas de ateísmo teórico e prático (cf. nn. 46-47). A partir do Iluminismo, a crítica à religião intensificou-se; a história foi marcada também pela presença de sistemas ateus, nos quais Deus era considerado uma mera projecção do ânimo humano, uma ilusão e o produto de uma sociedade já alterada por tantas alienações. Depois, o século passado conheceu um forte processo de secularismo, sob a bandeira da autonomia absoluta do homem, considerado como medida e artífice da realidade, mas empobrecido do seu ser criatura «à imagem e semelhança de Deus». No nosso tempo verificou-se um fenómeno particularmente perigoso para a fé: de facto, existe uma forma de ateísmo que definimos «prático», no qual não se negam as verdades da fé ou os ritos religiosos, mas simplesmente se consideram irrelevantes para a existência quotidiana, destacadas da vida, inúteis. Então, com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e vivemos «como se Deus não existisse» (etsi Deus non daretur). Mas, no final este modo de viver resulta ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus.
Na realidade, o homem separado de Deus reduz-se a uma só dimensão, a horizontal, e precisamente este reducionismo é uma das causas fundamentais dos totalitarismos que tiveram consequências trágicas no século passado, assim como a crise de valores que vemos na realidade actual. Obscurecendo a referência a Deus obscureceu-se também o horizonte ético, abrindo espaço ao relativismo e confirmando-se uma concepção ambígua da liberdade que em vez de ser liberatória acaba por ligar o homem a ídolos. As tentações que Jesus enfrentou no deserto antes da sua missão pública, representam bem aqueles «ídolos» que fascinam o homem, quando não vai além de si mesmo. Se Deus perder a centralidade, o homem perde o seu justo lugar, e não encontra a sua colocação na criação, nas relações com os outros. Não se extinguiu o que a sabedoria antiga evoca com o mito de Prometeu: o homem pensa que pode tornar-se ele mesmo «deus», dono da vida e da morte.
Diante deste quadro, a Igreja, fiel ao mandato de Cristo, nunca cessa de afirmar a verdade sobre o homem e sobre o seu destino. O Concílio Vaticano II afirma sinteticamente que: «O aspecto mais sublime da dignidade humana encontra-se na vocação do homem à união com Deus. Começa com a existência o convite que Deus dirige ao homem para dialogar com Ele: se o homem existe é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de o conservar na existência; e o homem não vive plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente este amor e não se entregar inteiramente ao seu criador» (Const. Gaudium et spes, 19).
Então, que respostas está a fé chamada a dar, com «doçura e respeito», ao ateísmo, ao cepticismo, à indiferença pela dimensão vertical, para que o homem do nosso tempo possa continuar a interrogar-se sobre a existência de Deus e a percorrer os caminhos que levam a Ele? Gostaria de mencionar alguns caminhos, que derivam tanto da reflexão natural, como da própria força da fé. Gostaria de os resumir muito sinteticamente em três palavras: o mundo, o homem e a fé.
A primeira: o mundo. Santo Agostinho, que na sua vida procurou a Verdade por muito tempo e foi arrebatado pela Verdade, escreveu uma página lindíssima e célebre, na qual disse: «Perscruta a beleza da terra, do mar, do ar rarefeito e onde quer que se expanda; perscruta a beleza do céu... e todas as realidades. Todas te responderão: olha para nós e vê como somos bonitas. A sua beleza é como um hino de louvor. Ora, estas criaturas tão bonitas, mas também mutáveis, quem as fez se não aquele que é a beleza inalterável? (Sermo 241, 2: PL 38, 1134). Penso que devemos recuperar e fazer recuperar ao homem de hoje a capacidade de contemplar a criação, a sua beleza, a sua estrutura. O mundo não é um magma amorfo, mas quanto mais o conhecemos e descobrimos os seus mecanismos maravilhosos, tanto mais vemos um desígnio, vemos que existe uma inteligência criadora. Albert Einstein disse que nas leis da natureza «se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante» (O Mundo como eu o vejo). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento.
A segunda palavra: o homem. É sempre de santo Agostinho a frase célebre com a qual diz que Deus é mais íntimo de mim de quanto eu o seja de mim mesmo (cf. Confissões III, 6, 11). A partir disto ele formulou o convite: «Não saias de ti mesmo, entra em ti mesmo: a verdade habita no homem interior» (De vera religione, 39, 72). Este é outro aspecto que corremos o risco de perder no mundo ruidoso e dispersivo no qual vivemos: a capacidade de reflectir, de meditar em profundidade e de detectar aquela sede de infinito que trazemos no íntimo, que nos impele a ir além e nos remete para Alguém que a possa satisfazer. O Catecismo da Igreja Católica afirma: «Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus» (n. 33).
A terceira palavra: a fé. Sobretudo na realidade do nosso tempo, não devemos esquecer que um caminho que leva ao conhecimento e ao encontro com Deus é a vida da fé. Quem crê está unido a Deus, está aberto à sua graça e à força da caridade. Assim a sua existência torna-se testemunho não de si mesmo, mas do Ressuscitado, e a sua fé não teme mostrar-se na vida quotidiana, está aberta ao diálogo que expressa profunda amizade pelo caminho de cada homem, e sabe dar esperança a necessidade de resgate, de felicidade e de futuro. De facto, a fé é encontro com Deus que fala e age na história e que converte a nossa vida diária, transformando a nossa mentalidade, juízos de valor, escolhas e acções concretas. Não é ilusão, fuga da realidade, refúgio cómodo, sentimentalismo, mas é participação de toda a vida e é anúncio do Evangelho, Boa Nova capaz de libertar o homem todo. Um cristão e uma comunidade que sejam activos e fiéis ao projecto de Deus que nos amou em primeiro lugar, constituem um caminho privilegiado para quantos vivem na indiferença e na dúvida acerca da sua existência e acção. Contudo, isto exige que o testemunho de fé de cada um se torne cada vez mais transparente, purificando a própria vida para que esteja em conformidade com Cristo. Hoje muitos têm uma concepção limitada da fé cristã porque a identificam com um mero sistema de crença e de valores e não com a verdade de um Deus que se revelou na história, desejoso de comunicar intimamente com o homem, numa relação de amor com ele. Na realidade, como fundamento de toda a doutrina e valor está o evento do encontro do homem com Deus em Jesus Cristo. O Cristianismo, antes de uma moral ou de uma ética, é o acontecimento do amor, é o acolhimento da pessoa de Jesus. Por isso o cristão e as comunidades cristãs antes de mais devem olhar e fazer olhar para Cristo, o verdadeiro Caminho que leva a Deus.


Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121114_po.html

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